sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Os sete fermentos (árabe palestino)



   Há muito tempo uma velha morava sozinha numa choupana. Ela não tinha ninguém. Certo dia, quando o tempo estava bonito, ela disse: "Ah, sim! Por Alá, hoje o dia está ensolarado e bonito, e vou para a praia. Mas primeiro vou misturar esta massa".
   A velha terminou de misturar a massa, acrescentou o fermento, vestiu sua melhor roupa, dizendo: "Por Alá, agora é só ir à praia". Chegando à praia, ela se sentou para descansar, e então... olha lá um barco, que já está se enchendo de gente.
   "Ei, tio!", ela disse ao dono do barco. "Aonde vai você, sob a proteção de
Alá?"
   "Por Alá, estamos indo para Beirute."
   "Está bem, irmão. Leve-me com você."
   "Deixe-me em paz, ó velha", ele disse. "O barco já está cheio, e não há lugar para você."
   "Tudo bem", ela disse. "Vá. Mas, se você não me levar, que seu barco encalhe e afunde!"
   Ninguém ligou para o que ela disse, e eles partiram. Mas o barco ainda não tinha avançado vinte metros e começou a afundar. "Ei!", exclamaram. "Parece que a praga daquela mulher foi ouvida." Então voltaram e levaram a velha com eles.
   Em Beirute, ela não conhecia nada nem ninguém. Já estava perto do pôr-do-sol. Os passageiros desembarcaram, ela também desceu e se sentou para descansar um pouco, encostada a um muro. O que mais poderia fazer? As pessoas passavam de um lado para outro, e estava ficando muito tarde. A certa altura, passou um homem. Todos já tinham ido para casa, e lá estava aquela mulher encostada à parede.
   "O que faz aqui, irmã?", ele perguntou.
   "Por Alá, irmão", ela respondeu. "Não estou fazendo nada. Não conheço esta cidade, não tenho a quem procurar. Misturei minha massa, coloquei o fermento, e vim passear um pouco até ela crescer, quando então iria voltar para casa."
   "Ótimo", ele disse. "Venha para minha casa, então."
   Ele a levou para sua casa. Lá moravam apenas ele e a esposa. Eles levaram comida, riram e se divertiram — vocês precisavam ver como se divertiam. Depois que terminaram, escutem só! O homem trouxe um feixe de varas deste tamanho e começou a bater na mulher. "Qual é o lado que machuca mais?" E continuou com aquilo até quebrá-las todas nos flancos da esposa.
   "Por que está fazendo isso, menino?", a velha perguntou, aproximando-se para impedi-lo de continuar.
   "Para trás!", ele disse. "Você não sabe qual é o pecado dela. É melhor ficar de fora!" Ele só parou de surrar sua mulher depois de ter quebrado todas as varas.
   "Pobre mulher!", exclamou a velha senhora quando o homem parou. "Qual é o seu pecado, ó infeliz?"
   "Por Alá", a mulher respondeu. "Não fiz nada, nem pensei em fazer nada. Ele diz que é porque não engravido e não posso ter filhos."
   "É só por isso?", a velha perguntou. "Mas isso é fácil. Ouça, deixe-me lhe dizer uma coisa. Amanhã, quando ele vier bater em você, diga-lhe que está grávida."
   No dia seguinte, como de costume, o marido chegou em casa trazendo tudo que era necessário para a casa e um feixe de varas. Depois do jantar, ele ia bater na mulher, mas, antes que desse o primeiro golpe, ela gritou: "Pare! Estou grávida!".
   "É verdade?"
   "Sim, por Alá!"
   Daquele dia em diante, ele parou de bater nela. Ele a mimava, não a deixava se levantar para fazer nenhum trabalho doméstico. Tudo que ela queria, ele levava para a mulher.
   Depois disso, todos os dias a mulher procurava a velha e dizia: "O que vou fazer, minha avó? E se ele descobrir?".
   "Não importa", a velha respondia. "Durma tranqüila. As brasas vivas da noite não são mais do que cinzas pela manhã." Todo dia a velha colocava trapos na barriga da mulher para aumentá-la e dizia: "Basta continuar dizendo que está grávida, e deixe o resto por minha conta. Os tições da noite são as cinzas da manhã".
   Acontece que aquele homem era o sultão, e as pessoas ouviram o comentário: "A mulher do sultão está grávida! A mulher do sultão está grávida!". Quando chegou a hora de dar à luz, a mulher foi ao padeiro e disse: "Quero que você asse para mim um pão em forma de um bebê do sexo masculino".
   "Está bem", ele disse e lhe fez o boneco, que ela embrulhou e levou para casa, sem deixar que o marido visse. As pessoas diziam: "A mulher do sultão está para dar à luz, logo o bebê vai nascer".
   A velha se aproximou. "Na minha terra, trabalho como parteira", disse. "Ela ficou grávida graças aos meus esforços, e eu é que vou fazer o parto. Não quero ninguém por perto."
   "Está bem", as pessoas disseram. E logo se puseram a falar: "Ela deu à luz! Ela deu à luz!".
   "E foi menino ou menina?"
   "Menino."
   A mulher agasalhou o boneco e o colocou no berço. As pessoas comentavam: "Ela deu à luz um menino!". Procuraram o sultão e lhe disseram que ela dera à luz um menino. O arauto saiu pela cidade anunciando à população que na semana seguinte só seria permitido comer ou beber na casa do sultão.
   Então a velha mandou avisar que ninguém podia ver o bebê antes de se passarem sete dias. No sétimo dia anunciou-se que a mulher do sultão e o bebê iam aos banhos públicos. E nesse meio-tempo, todos os dias a mulher perguntava à velha: "O que vou fazer, minha avó? E se o meu marido descobrir?". E a velha respondia: "Fique tranqüila, minha querida! As brasas da noite são as cinzas da manhã".
   No sétimo dia os banhos foram reservados para a mulher do sultão. Levando roupas novas, as mulheres foram para lá, acompanhadas por uma criada. A mulher do sultão entrou no banho, e as mulheres colocaram a criada na frente do boneco, dizendo-lhe: "Cuide do menino! Tenha cuidado para que não entre um cachorro e o leve embora!".
   Dentro de pouco tempo a criada se distraiu, e então entrou um cachorro, pegou o boneco e o levou embora. A criada correu atrás dele, gritando: "Desgraçado! Largue o filho do meu senhor!". Mas o cachorro continuava a correr mastigando o boneco.
   Dizem que na cidade havia um homem muito desgostoso. Fazia sete anos que ele estava assim, e ninguém conseguia curá-lo. No momento em que ele viu uma criada correndo atrás de um cachorro gritando: "Largue o filho do meu senhor", começou a rir. E ele riu, riu até esquecer a dor que o afligia, e se curou. Saiu de casa correndo e perguntou à criada: "Que história é essa? Vi você correndo atrás de um cachorro que levava um boneco, e você gritando para largar o filho do seu senhor. O que está acontecendo?".
   "Aconteceu assim, assim", ela respondeu.
   O homem tinha uma irmã que tivera gêmeos sete dias antes. Ele a mandou chamar e lhe disse: "Mana, você não quer deixar um dos seus filhos comigo?".
   "Sim", ela disse lhe entregando um dos bebês.
   A mulher do sultão o tomou e levou para sua casa. As pessoas chegavam para lhe dar os parabéns. Como ela estava feliz!
   Depois de algum tempo a velha disse: "Sabem, crianças, acho que a minha massa já cresceu, e quero ir para casa assar o meu pão".
   "Por que você não fica?", eles lhe pediram. "Você nos traz bênçãos." Não sei o que mais disseram, mas ela respondeu: "Não. A terra anseia por sua gente. Quero ir para casa".
   Eles a puseram num barco, encheram-no de presentes e disseram: "Vá sob a proteção de Alá".
   Quando ela chegou em casa, guardou os presentes e ficou por uns poucos dias. Então deu uma olhada na sua massa. "Ora, por Alá!", ela exclamou. "Minha massa ainda não cresceu. Vou para a beira-mar me divertir um pouco." Ela ficou um pouco à beira-mar e... olhe lá um barco!
   "Para onde você vai, tio?"
   "Por Alá, vamos para Alepo", responderam.
   "Levem-me com vocês."
   "Ora, deixe-nos em paz, sua velha. O barco está cheio, e não tem lugar."
   "Se vocês não me levarem, que seu barco encalhe e afunde!"
   Partiram, mas dentro de pouco tempo o barco estava prestes a afundar. Voltaram, chamaram a velha e a levaram. Sendo ela estrangeira, onde haveria de ir? Ela se sentou junto a um muro e ficou olhando as pessoas que passavam para um lado e para outro ao anoitecer. Depois que todos tinham se recolhido em casa à noite, um homem ia passando por ela.
   "O que está fazendo aqui?"
   "Por Alá, não conheço nada nesta cidade. Não conheço ninguém, e cá estou eu, sentada junto a este muro."
   "Ora, não é bom ficar sentada aqui na rua. Levante-se daí e venha comigo à minha casa."
   Ela se levantou e foi com ele. Também desta vez, na casa só viviam o marido e a mulher. Eles não tinham filhos nem mais ninguém. Comeram e se divertiram, e tudo estava às mil maravilhas, mas na hora de dormir ele pegou um feixe de varas e se pôs a bater na mulher até quebrá-las todas em suas costas. No segundo dia aconteceu a mesma coisa. No terceiro dia, a velha disse consigo mesma: "Por Alá, quero descobrir por que esse homem bate na mulher desse jeito".
   Ela perguntou à mulher e esta lhe respondeu: "Por Alá, o problema não é comigo, só que meu marido trouxe para casa um cacho de uvas pretas. Eu as pus num prato branco feito leite e as levei para ele. 'Olhe!', eu lhe disse. 'Como é bonito o contraste do preto com o branco!' Então ele se levantou de um salto e disse: 'Ao diabo com a sua raça! Você arranjou um amante negro!'. Garanti-lhe que estava me referindo às uvas, mas ele não quis acreditar em mim. Todos os dias traz um feixe de varas e me bate".
   "Vou livrá-la disso", a velha disse. "Vá comprar umas uvas pretas e as coloque num prato branco feito leite."
   À noite, depois que ele jantou, a mulher trouxe as uvas e as serviu. A velha então se levantou de um salto e disse: "Olhe! Está vendo, meu filho? Por Alá, não existe nada mais belo do que o contraste do preto com o branco!".
   "Oh!", ele exclamou balançando a cabeça. "Não é só a minha mulher que diz isso! Você é uma velha senhora e diz a mesma coisa. Acontece então que minha mulher não fez nada, e eu a tenho tratando desse jeito!"
   "Não me diga que você batia nela só por causa disso!", a velha exclamou. "Ora! Você perdeu a cabeça? Olhe aqui! Você não vê o quanto é belo o contraste das uvas pretas com o prato branco?"
   Dizem que eles se tornaram bons amigos e que o marido parou de bater na esposa. Depois de ficar com eles por mais alguns meses, a velha disse: "A terra anseia por sua gente. Talvez agora minha massa tenha crescido. Quero ir para casa".
   "Fique, minha senhora! Você nos trouxe bênçãos."
   "Não", ela respondeu. "Quero ir para casa."
   Eles lhe prepararam um barco, encheram-no de comida e outras provisões. Ela se arrumou e foi para casa. E lá, em sua casa, depois de ter se acomodado, descansado e guardado suas coisas, ela deu uma olhada na massa. "Por Alá", ela disse. "Começou a crescer, e agora vou levá-la ao padeiro para assar." Ela a levou para o padeiro, que lhe assou o pão.
   Esta é minha história. Eu a contei e agora a deixo nas suas mãos.

Do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter
 
***

"Os sete fermentos"
   Angela Carter comenta: "Fatime, mais uma vez — duas histórias entrelaçadas pela personalidade da velha senhora. A mulher se muda da casa do pai para a do marido e nunca tem seu próprio espaço — mas não descarte o poder do 'outro' — expresso em parte pela narração de histórias, bordado, cestaria, cerâmica, canções nupciais, endechas". Então ela faz uma citação de Speak bird, speak easy: "para a mulher, o conflito é inerente à estrutura do sistema".
   Lê-se numa nota de rodapé dos editores: "A impossibilidade de engravidar e ter filhos é um dos temas mais comuns nesta coletânea" (p. 207). Não há dúvida de que essa é uma das preocupações expressas pelas mulheres nas histórias, principalmente porque "há tolerância para com um homem que bate na mulher que não tem filhos" (loc. cit.).
   A mulher desta história é uma velha encarquilhada com poderes mágicos, uma astuta e sábia auxiliadora de mulheres que fala em sua própria linguagem cifrada. Por exemplo, "A terra anseia por sua gente. Quero ir para casa". Talvez o fato de o pão não crescer signifique que seu trabalho, libertar as mulheres dos maridos, nunca tenha fim — salvo, evidentemente, quando isso convém, para que o contador de histórias termine sua narrativa. Tratando-se de uma velha, ela é uma companheira ideal para uma jovem mulher, pois é pouco provável que queira desencaminhá-la. Isso lhe dá margem para desenvolver os seus ardis em benefício de sua protegida. Angela Carter cita: "Pensa-se que as velhas são assexuadas; por isso, o marido mostra-se propenso a acreditar na inocência da esposa quando a velha confirma sua interpretação do 'preto sobre branco'" (p. 211). O formato é padrão no Oriente Médio (cf As mil e uma noites).
   O "sete" do título indica que a história faz parte de um ciclo de sete histórias narradas segundo a mesma fórmula.
   (Muhawi e Kanaana, p. 206.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário