A pesquisa sobre contos de fadas revela um universo de histórias semelhantes espalhadas pela Europa, Ásia, África e Américas. Não encontrei até agora histórias originalmente atribuídas aos povos aborígenes da Austrália e Nova Zelândia, mas espero ter acesso a elas um dia. Nessas histórias, identificamos frequentemente grupos com as mesmas estruturas e elementos em comum, porém com detalhes culturais diversos.
Cinderela talvez seja o conto mais emblemático desse fenômeno, pois sua primeira versão data do século I a.C e se passa na Grécia e no Egito, mas há também versões chinesa, iraquiana, cigana, além das conhecidas francesa e alemã. Em 1893, Marian Roalfe Cox publicou o livro "Cinderella 345 variants", pra se ter uma ideia.
Este blog foi criado para compartilhar minha pesquisa com todos os apreciadores de contos de fadas que, como eu, estão sempre em busca de histórias, versões, livros e reflexões sobre o tema.
A seguir, trechos que selecionei da introdução do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter, escrito por ela na ocasião do lançamento da edição de "The virago book of fairy tales".
Devo a Angela Carter muito do meu entusiasmo pela pesquisa dos contos, especialmente por seu olhar para o brilhante desempenho das protagonistas femininas de outras eras e pela diversidade de suas coletâneas. Obrigada, Renata Roxo, por me abrir essa porta.
"Até meados do século XIX, a maioria dos
europeus pobres era analfabeta ou semi-analfabeta, e a maioria dos europeus era
pobre. Ainda em 1931, vinte por cento dos italianos adultos não sabiam ler nem
escrever; no sul, não menos de quarenta por cento. A prosperidade do Ocidente é
muito recente. Boa parte da África, da América Latina e da Ásia está mais pobre
do que nunca, e ainda existem línguas ágrafas ou que, como o somali, só muito
recentemente passaram a ser escritas. Nem por isso, porém, o somali deixa de
ter uma magnífica literatura, e sua transcrição para formas escritas com
certeza haverá de alterar profundamente a natureza dessa literatura, porque
falar é uma atividade pública, e ler, uma atividade solitária. Ao longo da
maior parte da história humana, "literatura", tanto prosa como
poesia, era algo contado, não escrito — ouvido, não lido.
Assim, os contos de fadas, os contos
populares, as histórias da tradição oral constituem a mais vital ligação que
temos com o universo da imaginação de homens e mulheres comuns, cujo trabalho criou
o mundo.
Nos últimos duzentos ou trezentos anos, contos de fadas e contos
populares foram transpostos para o papel pelo valor que têm em si mesmos e são apreciados
por uma vasta gama de razões, que vão desde o gosto pelo passado à ideologia. O
fato de serem escritas — e, sobretudo, impressas — faz que essas histórias
sejam preservadas e também inexoravelmente alteradas.
À medida
que o passado fica cada vez mais diferente do presente, distanciando-se ainda
mais rapidamente nos países em desenvolvimento do que nos desenvolvidos,
industrializados, precisamos saber quem fomos de maneira mais precisa, para
poder conceber o que haveremos de ser.
A história, a sociologia e a psicologia que
nos são transmitidas pelos contos de fadas são informais — preocupam-se ainda
menos com questões nacionais e internacionais do que os romances de Jane
Austen. Além disso, são anônimas e não revelam o sexo de quem as criou. Podemos
saber o nome e o gênero de determinado indivíduo que conta determinada história
simplesmente porque a pessoa que o recolheu o anotou, mas nunca poderemos saber
o nome da pessoa que inventou a história. Nossa cultura é individualizada em
alto grau e acredita muito na obra de arte como realização única, e no artista
como um inspirado, original e semidivino criador de obras únicas. Mas contos de
fadas não são nada disso, e tampouco o são seus criadores. Quem teria inventado
as almôndegas? Em que país? Existe uma receita definitiva para a sopa de
batata? Pensemos em termos de culinária: "É assim que eu faço sopa de
batata".
O mais provável é que a história tenha sido
composta mais ou menos da forma como a temos agora, a partir de todo tipo de
fragmento de outras histórias, há muito tempo e em algum lugar remoto — e foi
remendada, sofreu pequenos acréscimos e supressões, mesclou-se com outras,
quando então nossa informante lhe deu sua forma pessoal, para adequá-la a um
público ouvinte de, digamos, crianças, bêbados num casamento, velhas debochadas
ou pessoas presentes num velório — ou simplesmente para o seu próprio prazer.
Embora o conteúdo de um conto de fadas
possa mostrar a vida real dos pobres anônimos, às vezes até com uma incômoda
fidelidade — a pobreza, a fome, as relações familiares instáveis, a crueldade
que tudo permeia e também, em alguns casos, o bom humor, o vigor, o consolo
terra-a-terra do calor de um bom fogo e de uma barriga cheia —, a forma do
conto de fadas em geral não é construída de modo a convidar os ouvintes a
partilharem a sensação de uma experiência vivida. A "história de velhas
comadres" certamente deixa patente sua inverossimilhança. "Houve e
não houve uma vez, havia um menino" é uma das fórmulas de abertura
preferidas pelos contadores de histórias armênios. A variante armênia do
enigmático "Era uma vez" do conto de fadas inglês e francês é ao
mesmo tempo absolutamente precisa e absolutamente misteriosa: "Era e não
era uma vez...".
Quando
ouvimos a fórmula "Era uma vez" ou uma de suas variantes, já sabemos
que o que vem a seguir não tem a pretensão de ser verdade. Mamãe Gansa pode
contar mentiras, mas não vai nos enganar dessa forma. Ela vai nos divertir, vai
nos ajudar a passar o tempo de forma agradável, uma das mais nobres funções da
arte. No fim da narrativa o contador de histórias armênio diz: "Do céu
caíram três maçãs, uma para mim, uma para o contador de histórias e uma para a
pessoa que os divertiu". Os contos de fadas atendem ao princípio do
prazer, mas, como não existe algo como o prazer puro, sempre há alguma coisa
mais do que aquilo que dá na vista.
Suprimir expressões "pesadas" era um passatempo comum no século XIX, parte do projeto de transformar o divertimento universal dos pobres no refinado passatempo da burguesia, e especialmente das crianças burguesas. A supressão de referências a funções sexuais e escatológicas, a amenização de situações sexuais e a relutância em incluir material "grosseiro" — isto é, piadas sujas — contribuíam para descaracterizar um conto de fadas e, por tabela, para descaracterizar sua visão da vida cotidiana.
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