quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Contos de fadas, contos folclóricos, histórias da carochinha

Contos de fadas são histórias fascinantes. Elas contêm uma sabedoria que vem atravessando os tempos e continua divertindo leitores e ouvintes. Podemos ter acesso a ruínas arquitetônicas, artefatos, obras de arte, pinturas, ilustrações, esculturas, até corpos mais ou menos preservados, porém não temos acesso aos sentimentos, fofocas, dramas e humor da vida ao longo dos últimos 8, 10 séculos ou mais. Ao ler contos de fadas, podemos reconhecer fragmentos da vida cotidiana do mundo pré-industrial, que revelam toda a crueza do cotidiano de nobres e camponeses de todos os cantos do mundo: o trabalho infinito das mulheres, a alta mortalidade materna, que nos chega através da quase onipresente figura da madrasta, as superstições, as profissões extintas, a realidade diária de produzir com as próprias mãos a roupa e o alimento imprescindíveis, a ignorância do mundo para além da comunidade, esta frequentemente aliada ao desejo ou necessidade de partir para o desconhecido, elemento que se repete na estrutura de diversos contos.

A pesquisa sobre contos de fadas revela um universo de histórias semelhantes espalhadas pela Europa, Ásia, África e Américas. Não encontrei até agora histórias originalmente atribuídas aos povos aborígenes da Austrália e Nova Zelândia, mas espero ter acesso a elas um dia. Nessas histórias, identificamos frequentemente grupos com as mesmas estruturas e elementos em comum, porém com  detalhes culturais diversos.

Cinderela talvez seja o conto mais emblemático desse fenômeno, pois sua primeira versão data do século I a.C e se passa na Grécia e no Egito, mas há também versões chinesa, iraquiana, cigana, além das conhecidas francesa e alemã. Em 1893, Marian Roalfe Cox publicou o livro "Cinderella 345 variants", pra se ter uma ideia.

Este blog foi criado para compartilhar minha pesquisa com todos os apreciadores de contos de fadas que, como eu, estão sempre em busca de histórias, versões, livros e reflexões sobre o tema.

A seguir, trechos que selecionei da introdução do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter, escrito por ela na ocasião do lançamento da edição de "The virago book of fairy tales".
Devo a Angela Carter muito do meu entusiasmo pela pesquisa dos contos, especialmente por seu olhar para o brilhante desempenho das protagonistas femininas de outras eras e pela diversidade de suas coletâneas. Obrigada, Renata Roxo, por me abrir essa porta.



"Até meados do século XIX, a maioria dos europeus pobres era analfabeta ou semi-analfabeta, e a maioria dos europeus era pobre. Ainda em 1931, vinte por cento dos italianos adultos não sabiam ler nem escrever; no sul, não menos de quarenta por cento. A prosperidade do Ocidente é muito recente. Boa parte da África, da América Latina e da Ásia está mais pobre do que nunca, e ainda existem línguas ágrafas ou que, como o somali, só muito recentemente passaram a ser escritas. Nem por isso, porém, o somali deixa de ter uma magnífica literatura, e sua transcrição para formas escritas com certeza haverá de alterar profundamente a natureza dessa literatura, porque falar é uma atividade pública, e ler, uma atividade solitária. Ao longo da maior parte da história humana, "literatura", tanto prosa como poesia, era algo contado, não escrito — ouvido, não lido.

Assim, os contos de fadas, os contos populares, as histórias da tradição oral constituem a mais vital ligação que temos com o universo da imaginação de homens e mulheres comuns, cujo trabalho criou o mundo.


Nos últimos duzentos ou trezentos anos, contos de fadas e contos populares foram transpostos para o papel pelo valor que têm em si mesmos e são apreciados por uma vasta gama de razões, que vão desde o gosto pelo passado à ideologia. O fato de serem escritas — e, sobretudo, impressas — faz que essas histórias sejam preservadas e também inexoravelmente alteradas. 

À medida que o passado fica cada vez mais diferente do presente, distanciando-se ainda mais rapidamente nos países em desenvolvimento do que nos desenvolvidos, industrializados, precisamos saber quem fomos de maneira mais precisa, para poder conceber o que haveremos de ser.

A história, a sociologia e a psicologia que nos são transmitidas pelos contos de fadas são informais — preocupam-se ainda menos com questões nacionais e internacionais do que os romances de Jane Austen. Além disso, são anônimas e não revelam o sexo de quem as criou. Podemos saber o nome e o gênero de determinado indivíduo que conta determinada história simplesmente porque a pessoa que o recolheu o anotou, mas nunca poderemos saber o nome da pessoa que inventou a história. Nossa cultura é individualizada em alto grau e acredita muito na obra de arte como realização única, e no artista como um inspirado, original e semidivino criador de obras únicas. Mas contos de fadas não são nada disso, e tampouco o são seus criadores. Quem teria inventado as almôndegas? Em que país? Existe uma receita definitiva para a sopa de batata? Pensemos em termos de culinária: "É assim que eu faço sopa de batata".
 

O mais provável é que a história tenha sido composta mais ou menos da forma como a temos agora, a partir de todo tipo de fragmento de outras histórias, há muito tempo e em algum lugar remoto — e foi remendada, sofreu pequenos acréscimos e supressões, mesclou-se com outras, quando então nossa informante lhe deu sua forma pessoal, para adequá-la a um público ouvinte de, digamos, crianças, bêbados num casamento, velhas debochadas ou pessoas presentes num velório — ou simplesmente para o seu próprio prazer.

Embora o conteúdo de um conto de fadas possa mostrar a vida real dos pobres anônimos, às vezes até com uma incômoda fidelidade — a pobreza, a fome, as relações familiares instáveis, a crueldade que tudo permeia e também, em alguns casos, o bom humor, o vigor, o consolo terra-a-terra do calor de um bom fogo e de uma barriga cheia —, a forma do conto de fadas em geral não é construída de modo a convidar os ouvintes a partilharem a sensação de uma experiência vivida. A "história de velhas comadres" certamente deixa patente sua inverossimilhança. "Houve e não houve uma vez, havia um menino" é uma das fórmulas de abertura preferidas pelos contadores de histórias armênios. A variante armênia do enigmático "Era uma vez" do conto de fadas inglês e francês é ao mesmo tempo absolutamente precisa e absolutamente misteriosa: "Era e não era uma vez...".

Quando ouvimos a fórmula "Era uma vez" ou uma de suas variantes, já sabemos que o que vem a seguir não tem a pretensão de ser verdade. Mamãe Gansa pode contar mentiras, mas não vai nos enganar dessa forma. Ela vai nos divertir, vai nos ajudar a passar o tempo de forma agradável, uma das mais nobres funções da arte. No fim da narrativa o contador de histórias armênio diz: "Do céu caíram três maçãs, uma para mim, uma para o contador de histórias e uma para a pessoa que os divertiu". Os contos de fadas atendem ao princípio do prazer, mas, como não existe algo como o prazer puro, sempre há alguma coisa mais do que aquilo que dá na vista.  

Suprimir expressões "pesadas" era um passatempo comum no século XIX, parte do projeto de transformar o divertimento universal dos pobres no refinado passatempo da burguesia, e especialmente das crianças burguesas. A supressão de referências a funções sexuais e escatológicas, a amenização de situações sexuais e a relutância em incluir material "grosseiro" — isto é, piadas sujas — contribuíam para descaracterizar um conto de fadas e, por tabela, para descaracterizar sua visão da vida cotidiana.

É irônico, porém, que o conto de fadas, se definido como uma narrativa transmitida numa atitude pouco preocupada com o princípio de realidade, com tramas sempre renovadas a cada vez que se conta, tenha sobrevivido no século XX em sua forma mais vigorosa como a piada suja e, enquanto tal, dê claros sinais de continuar a florescer, de forma não oficial, nas margens deste século XXI da comunicação universal de massa, de vinte e quatro horas de entretenimento público."


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