sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A leste do sol e a oeste da lua (norueguês)



   Era uma vez um pobre agricultor com uma prole tão numerosa que ele não conseguia prover a comida e as roupas necessárias. Os seus filhos eram muito bonitos, porém a mais bonita de todas era a filha mais nova, era o encanto personificado.

   Numa noite de quinta-feira, no outono, o tempo estava rigoroso, tudo cruelmente escuro, chovia e ventava, abalando as paredes da cabana. Estavam todos sentados em volta do fogo, ocupados com uma coisa ou outra. E então ouviram três batidinhas na vidraça da janela. O pai foi ver o que se passava e, quando saiu de casa, viu nada menos que um grande Urso Branco. "Boa noite para você", o Urso Branco disse. "Igualmente", o homem disse.

   "Você não quer me dar a sua filha mais nova? Se você a der, vou fazê-lo ficar rico na mesma medida em que agora é pobre", o Urso disse.

   Bem, o homem não ia lamentar nem um pouco ficar tão rico. Mas mesmo assim ele achou que deveria primeiro conversar um pouco com a filha. Então entrou em casa e lhe contou que havia um grande Urso Branco, esperando lá fora, que lhe prometera enriquecê-lo se ele lhe desse a filha mais nova.

   A jovem disse um redondo "Não!". Nada a faria dar uma resposta diferente. Então o homem saiu e disse ao Urso Branco que deveria voltar na quinta-feira seguinte para ter uma resposta. Nesse meio-tempo, ele conversou com a filha, dizendo-lhe quantas riquezas poderiam ter, e que ela própria ficaria rica. Finalmente ela mudou de idéia, lavou e remendou seus trapos, fazendo-se o mais elegante possível, e ficou pronta para partir. Não vou dizer que teve muito trabalho para arrumar suas coisas.

   Na noite da quinta-feira seguinte, o Urso Branco foi buscá-la, ela subiu nas costas dele com sua trouxa, e lá se foram eles. Depois de andar um pouco, o Urso Branco disse:

   "Você está com medo?"

   "Não!", ela não estava.

   "Ótimo! Segure firme no meu casaco de pêlos, que assim você não terá nada a temer", o Urso disse.

   Então percorreram um caminho muito longo até chegarem a uma colina bastante íngreme. O Urso Branco deu uma batida na encosta da colina e uma porta se abriu. Eles entraram num castelo onde havia muitas salas, todas iluminadas, que rebrilhavam com prata e ouro. E havia também uma mesa posta, grande a mais não poder. Então o Urso Branco lhe deu uma sineta de prata, que ela deveria tocar quando quisesse alguma coisa, e esta lhe seria dada imediatamente.

   Já noite alta, depois de ter comido e bebido, ela ficou com sono, quis ir para a cama e tocou a sineta. Mal ela tocou, encontrou-se num quarto onde havia uma cama arrumada, tão limpa e branca que dava vontade de nela descansar, com travesseiros e cortinas de seda e franjas douradas. Tudo no quarto era de ouro ou de prata. Quando ela se deitou na cama e apagou a luz, um homem veio se deitar ao seu lado. Era o Urso Branco, que à noite se livrava da sua aparência animal. Mas ela nunca o via, porque ele sempre chegava depois de se apagar a luz e ia embora antes do alvorecer. Por algum tempo ela ficou feliz com essa situação, mas a certa altura começou a ficar calada e tristonha. Isso porque passava o dia inteiro sozinha, e ela queria voltar para casa para ver seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs. Certo dia, quando o Urso Branco perguntou o que lhe faltava, ela disse que aquele lugar era muito maçante e solitário, que queria ir para casa para ver seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs, porque ficar longe deles a fazia triste e infeliz.

   "Bem, bem", o Urso disse. "Talvez haja um remédio para tudo isso. Mas você tem que me prometer uma coisa: não falar a sós com sua mãe, falar somente quando os outros estiverem ouvindo. Ela vai tentar tomar sua mão e levá-la a um quarto para conversar a sós com você. Mas você deve evitar que isso aconteça, pois pode trazer má sorte para nós dois."

   Num domingo, o Urso Branco disse que partiriam para ver o pai e a mãe dela. E lá se foram eles, ela montada às suas costas. Percorreram um longo caminho e finalmente chegaram a uma casa imponente, e lá estavam seus irmãos e irmãs correndo e brincando do lado de fora, e tudo era tão bonito que era uma alegria ver.

   "É aqui que seu pai e sua mãe moram agora", o Urso Branco disse. "Mas não se esqueça do que eu lhe disse, senão vai trazer infelicidade para nós dois."

   "Não!", não iria esquecer. Quando ela chegou à casa, o Urso Branco deu meia-volta e foi embora.

   E, quando ela entrou para ver o pai e a mãe, houve uma alegria que parecia não ter fim. Nenhum deles achava ser possível lhe agradecer o bastante por tudo o que fizera por eles. Agora tinham tudo o que queriam, do bom e do melhor, e todos queriam saber como ela passava no lugar onde agora vivia.

   Bem, disse ela, era muito bom viver onde ela vivia, pois tinha tudo o que queria. Mas acho que nenhum deles estava entendendo direito a situação nem conseguiu tirar grande coisa dela. E então, à tarde, depois da refeição, tudo aconteceu como o Urso Branco previra. A mãe queria falar com ela a sós no seu quarto, mas ela se lembrou do que o Urso Branco dissera e não quis acompanhá-la até o quarto.

   "Oh, essa conversa pode ficar para depois", ela disse para dissuadir a mãe. Mas esta terminou por encontrar um meio de acuá-la, e ela teve que lhe contar toda a história. Contou então que toda noite, tão logo se deitava na cama e apagava a luz, um homem se deitava ao seu lado, mas ela não o via porque ele sempre ia embora antes do alvorecer. Contou também que vivia triste e aflita, porque gostaria de vê-lo, e que estava sempre sozinha, sentindo-se isolada, solitária e entediada.

   "Meu Deus!", a mãe exclamou. "Pode ser que você esteja dormindo com um Troll! Mas agora vou lhe ensinar um jeito de conseguir vê-lo. Vou lhe dar um pedacinho de vela, que você pode levar junto ao peito. Acenda a vela quando ele estiver dormindo, mas tenha cuidado para não deixar a cera cair nele."

   Sim! Ela pegou a vela, escondeu-a no peito, e quando anoiteceu o Urso Branco foi buscá-la.

   Mas, logo no começo do percurso, o Urso Branco perguntou se as coisas tinham acontecido como ele previra.

   Bem, ela não podia dizer que não.

   "Agora preste atenção", ele disse. "Se ouviu o conselho da sua mãe, você trouxe má sorte para nós dois, e tudo que se passou entre nós não terá valido de nada."

   "Não", ela disse. Ela não dera ouvidos ao conselho da mãe.

   Quando ela chegou em casa e foi para a cama, aconteceu a mesma coisa de sempre. O homem se deitou ao seu lado. Mas na calada da noite, quando o ouviu ressonar, ela se levantou, acendeu a vela, iluminou-o, viu que ele era o Príncipe mais encantador que jamais se vira e se apaixonou profundamente por ele no mesmo instante, pensando que não poderia viver se não lhe desse um beijo naquela mesma hora. E assim ela fez, mas ao beijá-lo deixou cair três gotas quentes de cera na camisa dele, e ele acordou.

   "O que você fez?", ele exclamou. "Agora você trouxe infelicidade para nós dois, pois, se você tivesse guardado segredo apenas durante este ano, eu estaria livre. Porque tenho uma madrasta que me enfeitiçou, por isso sou um Urso Branco durante o dia, e um Homem durante a noite. Agora todos os laços que nos prendiam se romperam, e preciso me afastar de você para ficar junto dela. Ela vive num castelo situado a leste do sol e a oeste da lua, onde mora também uma Princesa com quinze palmos de nariz, com quem agora devo me casar."

   Ela chorou e se ofendeu, mas não adiantou nada. Ele precisava ir embora.

   Então ela perguntou se poderia acompanhá-lo.

   Não, não poderia.

   "Então me diga o caminho", ela disse, "que vou procurar você. Pelo menos isso devo ter permissão para fazer."

   "Sim, você poderia fazer isso", ele disse. "Mas não existe caminho para esse lugar. Ele fica a leste do sol e a oeste da lua. Sendo assim, você nunca vai encontrar o caminho."

   Na manhã seguinte, quando ela acordou, o Príncipe e o palácio tinham desaparecido, e ela estava deitada numa nesga de gramado verde, no meio de uma mata fechada e sombria, tendo ao seu lado a mesma trouxa de trapos que levara da sua antiga casa.

   Depois de esfregar os olhos para acabar de despertar e depois de chorar até a exaustão, ela se pôs a caminho e andou durante muitos e muitos dias, até chegar a um penhasco elevado. Ao pé dele havia uma velha brincando com uma maçã de ouro, que ela jogava para cima. A jovem lhe perguntou se conhecia o caminho que levava a um Príncipe que vivia com a sua madrasta num castelo a leste do sol e a oeste da lua e que deveria se casar com a Princesa que tinha quinze palmos de nariz.

   "E como você ficou sabendo da existência dele?", a velha perguntou. "Por acaso você não é a jovem que deveria ficar com ele?"

   Sim, ela era.

   "Ah, então é você, é?", a velha disse. "Bem, a única coisa que sei sobre ele é que mora num castelo que fica a leste do sol e a oeste da lua, e que lá você vai chegar, tarde ou nunca. Mas você pode pegar meu cavalo emprestado e ir nele até minha vizinha mais próxima. Talvez ela saiba lhe dizer. Quando você chegar lá, basta dar uma chicotada sob a orelha esquerda do cavalo e dizer a ele para voltar para casa. Mas espere um pouco... pode levar esta maçã de ouro com você."

   Ela montou no cavalo e cavalgou por muito, muito tempo e por fim chegou a outro penhasco, ao pé do qual havia outra velha, que estava com um pente de ouro para cardar. A jovem lhe perguntou se sabia o caminho para o castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua, e ela respondeu, como a primeira velha, que não sabia de nada, exceto que o castelo ficava a leste do sol e a oeste da lua.

   "E lá você vai chegar, tarde ou nunca. Mas você pode pegar o meu cavalo emprestado e ir nele até minha vizinha mais próxima. Talvez ela saiba lhe dizer. E, quando você chegar lá, basta dar uma chicotada sob a sua orelha esquerda e dizer a ele para voltar para casa."

   E a velha lhe deu o pente de cardar feito de ouro. Pode ser que ele lhe sirva para alguma coisa, ela disse. Então a jovem montou no cavalo, cavalgou durante muito, muito tempo, cansando muito. E finalmente chegou a outro grande penhasco, ao pé do qual estava outra velha fiando com uma roda de fiar de ouro. A jovem também lhe perguntou como chegar até o Príncipe e onde ficava o castelo situado a leste do sol e a oeste da lua. E a coisa se repetiu mais uma vez.

   "Por acaso você não é a jovem que deveria ficar com ele?", a velha disse.

   Sim, era.

   Mas ela não estava nem um pouco mais informada que as outras sobre o tal caminho. Ela sabia que ficava "a leste do sol e a oeste da lua" — e nada mais.

   "E lá você vai chegar, tarde ou nunca. Mas vou lhe emprestar meu cavalo, e acho que é melhor você cavalgar em direção ao Vento Leste e perguntar a ele. Talvez ele conheça aquelas paragens e possa levar você para lá. E, quando você chegar onde ele está, basta dar uma chicotada sob a orelha esquerda do cavalo, que ele vai voltar para casa sozinho."

   E ela lhe deu a roda de fiar feita de ouro.

   "Talvez ela lhe sirva para alguma coisa", a velha disse.

   Então ela cavalgou durante muitos e muitos dias fatigantes, até chegar à casa do Vento Leste, e então ela perguntou se ele poderia lhe ensinar o caminho para chegar ao Príncipe que morava a leste do sol e a oeste da lua. Sim, o Vento Leste ouvira falar muito do Príncipe e do castelo, mas não podia lhe ensinar o caminho, pois nunca fora tão longe.

   "Mas, se você quiser, vou com você até o meu irmão Vento Oeste, que talvez saiba, porque ele é muito mais forte. Se quiser montar nas minhas costas, posso levar você até lá."

   Sim, ela montou nas suas costas, e imagino que fizeram o percurso bem rápido.

   Quando chegaram, entraram na casa do Vento Oeste, e o Vento Leste disse que aquela jovem estava destinada ao Príncipe que vivia no castelo a leste do sol e a oeste da lua, e que ela o tinha procurado e que ele a acompanhara, e ficaria satisfeito se o Vento Oeste soubesse como chegar ao castelo.

   "Não", o Vento Oeste disse, nunca fui tão longe. "Mas, se você quiser, levo você ao meu irmão, o Vento Sul, porque ele é muito mais forte do que nós dois, e já andou por esse mundo todo. Talvez ele possa lhe dizer. Pode subir nas minhas costas que a levo até ele."

   Sim! Ela montou nas suas costas e foram até o Vento Sul, e imagino que a viagem tenha sido bem rápida.

   Quando chegaram lá, o Vento Oeste perguntou ao irmão se poderia dizer à jovem o caminho do castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua, pois ela estava destinada ao Príncipe que lá vivia.

   "Não me diga! Então é ela?", o Vento Sul disse.

   "Bem", ele acrescentou. "No meu tempo andei por muitos lugares, mas nunca fui tão longe. Mas se quiser a levo ao meu irmão Vento Norte, que é o mais velho e mais forte de todos nós e, se ele não souber onde é, você não vai encontrar ninguém no mundo que possa lhe dizer. Pode montar nas minhas costas, que levo você até lá."

   Sim! Ela montou nas suas costas, e lá se foram a grande velocidade. Também dessa vez a viagem foi rápida.

   Quando chegaram à casa do Vento Norte, este estava tão desvairado e irritado que de longe já se sentiam as suas lufadas frias.

   "AO DIABO COM VOCÊS DOIS, O QUE QUEREM?", o vento rugiu de longe, fazendo-os tremer de frio.

   "Bem", o Vento Sul disse. "Não precisa falar desse jeito, porque quem está aqui sou eu, seu irmão, o Vento Sul, e aqui está a jovem destinada ao Príncipe que mora no castelo a leste do sol e a oeste da lua, e agora ela quer saber se você já esteve lá e se pode lhe ensinar o caminho, porque ficaria muito feliz em encontrá-lo novamente."

   "SIM, SEI MUITO BEM ONDE FICA", o Vento Norte disse. "Uma vez soprei uma folha de choupo até lá, mas fiquei tão cansado que muitos dias depois eu não conseguia soprar nem uma lufada. Mas, se você quer mesmo ir até lá, e não tiver medo de me acompanhar, carrego-a nas minhas costas e vejo se consigo levá-la até onde quer ir."

   Sim! Com todo gosto. Ela faria tudo que lhe fosse possível. Quanto a sentir medo, por mais loucamente que ele voasse, ela não haveria de temer.

   "Muito bem, então", o Vento Norte disse. "Mas você tem que dormir aqui esta noite, porque precisaremos viajar um dia inteiro, se quisermos chegar lá."

   No dia seguinte bem cedo o Vento Norte a acordou, inflou-se, ficou tão forte e grande que dava até medo olhar para ele. E lá se foram pelos ares, como se só fossem parar quando chegassem ao fim do mundo.

   Aqui embaixo caiu tal tempestade que derrubou extensas matas e muitas casas, e quando ele passou sobre o mar imenso centenas de navios afundaram.

   E eles continuaram a voar — não dá nem para acreditar quão longe foram — e durante todo o tempo continuaram sobre o mar. O Vento Norte ficava cada vez mais cansado e tão ofegante que mal podia dar um sopro, e as suas asas começaram a cair, cair, até que finalmente ele desceu tanto que as cristas das ondas lhe cobriram os calcanhares.

   "Você está com medo?", o Vento Norte disse.

   "Não!", ela não estava.

   Já estavam perto da terra firme. E o Vento Norte ainda tinha força suficiente para jogá-la na praia, sob as janelas do castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua. Mas então ele estava tão fraco que precisou descansar por muitos dias antes de poder voltar para casa.

   Na manhã seguinte a jovem se sentou sob a janela do castelo e começou a brincar com a maçã de ouro. A primeira pessoa que ela viu foi a Nariguda com quem o Príncipe deveria se casar.

   "O que você quer em troca da sua maçã de ouro, jovem?", a Nariguda disse, abrindo a janela.

   "Não está à venda, não a troco por ouro nem por dinheiro", a jovem disse.

   "Se você não a troca por ouro nem por dinheiro, por que a trocaria? Você pode fazer o seu preço", a Princesa disse.

   "Bem! Se eu puder me encontrar com o Príncipe que mora aqui e puder passar a noite com ele, pode ficar com a maçã", disse a jovem que fora trazida pelo Vento Norte.

   Sim! Ela podia fazer isso. Então a Princesa ficou com a maçã de ouro. Mas, quando à noite a jovem chegou ao quarto do Príncipe, ele estava dormindo profundamente. Ela o chamou, sacudiu, chorando de vez em quando com profunda mágoa. Mas nada do que ela fez conseguiu acordá-lo. Na manhã seguinte, tão logo o dia raiou, a Princesa de nariz grande se aproximou e a levou para fora do castelo.

   Durante o dia ela se sentou sob as janelas do castelo e começou a cardar com o seu pente de ouro, e aconteceu a mesma coisa. A Princesa perguntou o que ela queria em troca do pente. E ela respondeu que não o trocaria por ouro nem por dinheiro, mas, se a outra a deixasse passar a noite com o Príncipe, poderia ficar com ele. Mas, quando chegou ao quarto, ela o encontrou novamente em sono profundo, e por mais que chamasse, por mais que o sacudisse, chorasse e implorasse, não conseguia acordá-lo. E, aos primeiros sinais do raiar do dia, a Princesa de nariz grande se aproximou e a enxotou de lá novamente.

   Durante o dia a jovem se sentou sob a janela do castelo e começou a fiar com a roda de fiar de ouro, e a Princesa de nariz grande também quis ficar com a roda. A jovem disse, como antes, que não a trocava por ouro nem por dinheiro, mas, se ela pudesse ficar sozinha com o Príncipe durante a noite, a Princesa poderia ficar com a roda.

   Sim! Ela poderia muito bem fazer isso. Mas agora é bom que vocês saibam que alguns cristãos que tinham sido levados à força para lá e que estavam no quarto vizinho ao do Príncipe ouviram a mulher que lá estivera chorando, suplicando e chamando por ele duas noites seguidas, e tinham contado ao Príncipe.

   Naquela noite, quando a Princesa chegou com o sonífero para o Príncipe, ele fingiu que bebia mas o jogou para trás, pois desconfiou que se tratava de um sonífero. Então, quando a jovem chegou, encontrou o Príncipe totalmente acordado e lhe contou toda a história de como chegara até ali.

   "Ah", o Príncipe disse. "Você chegou numa boa hora, porque amanhã vai ser o dia do casamento. Mas agora não quero casar com a Nariguda, e você é a única mulher do mundo que pode me libertar. Vou pedir que minha camisa que tem as três gotas de cera seja lavada. Ela vai concordar, porque não sabe que foi você quem as derramou na camisa. Mas esse é um trabalho só para cristãos, e não para esse bando de Trolls, e vou dizer que não quero nenhuma outra mulher para minha esposa, a não ser a que for capaz de lavar a camisa. E vou pedir a você que a lave."

   Então se entregaram à alegria e ao amor durante toda a noite. No dia seguinte, que seria o do casamento, o Príncipe disse:

   "Antes de mais nada, gostaria de saber do que a minha noiva é capaz."

   "Sim!", a madrasta disse, com todo entusiasmo.

   "Bem", o Príncipe disse. "Tenho uma bela camisa que gostaria de usar no meu casamento, mas não sei por que ela está com três manchas de cera que precisam ser eliminadas. Jurei que só casaria com a mulher que fosse capaz de fazer isso. Se ela não conseguir, não merece casar comigo."

   Bem, elas disseram que aquilo não era lá grande coisa, e concordaram. Então a do nariz grande começou a lavar a camisa com todo vigor, mas, por mais que lavasse e esfregasse, as manchas só aumentavam.

   "Ah!", a sua velha mãe exclamou. "Você não consegue. Deixe-me tentar."

   Mal ela pegou a camisa, porém, a coisa ficou ainda pior, e, apesar de ela esfregar, torcer e bater, as manchas ficavam cada vez maiores e mais escuras, e mais feia ficava a camisa.

   Então todas as outras Trolls começaram a lavar, mas quanto mais o faziam, mais a camisa ficava feia, até que finalmente ficou toda preta, como se tivesse ficado em cima da chaminé.

   "Ah!", o Príncipe disse. "Vocês não servem para coisa nenhuma: não conseguem lavar. Aí fora há uma jovem mendiga. Tenho certeza de que ela sabe lavar melhor do que todas vocês. ENTRE, JOVEM!", ele gritou.

   Bem, ela entrou.

   "Jovem, você pode lavar esta camisa e deixá-la bem limpa?", ele disse.

   "Não sei", ela respondeu. "Mas acho que sim."

   E mal pegou a camisa e a mergulhou na água, ela ficou branca como a neve, e até mais branca.

   "Sim, você é a jovem que me serve", o Príncipe disse.

   Ante aquilo a velha ficou tão furiosa que estourou na mesma hora, e logo depois foi a vez da Princesa de nariz grande, e depois desta todo o bando de Trolls — pelo menos nunca mais ouvi falar nada sobre eles.

   Quanto ao Príncipe e à Princesa, libertaram todos os pobres cristãos que tinham sido seqüestrados e presos no castelo, levaram toda prata e todo ouro e se distanciaram o mais que puderam do castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua.


Do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter


***

   "A leste do sol e a oeste da lua"

   Mais uma vez Asbjornsen e Moe, ainda na tradução de Darsent (Darsent, p. 22). Este é um dos contos de fadas de maior beleza lírica entre todos os do norte da Europa, e um dos que se revelaram irresistíveis aos escritores "literários" ao longo de dois mil anos, com sua relação com a clássica história de Cupido e Psiquê — tal como recontada em O asno de ouro, de Apuleio — e também com o encantador conto de fadas literário "A bela e a fera", escrito por madame Leprince de Beaumont no século XVIII.

   Mas a Bela de madame Leprince de Beaumont é uma jovem bem educada, criada para se amoldar a uma vida burguesa, virtuosa. Madame Leprince de Beaumont trabalhou como preceptora durante vinte anos; ela escreveu muito sobre o bom comportamento. Mas esta jovem não hesita em ir para a cama com um urso desconhecido e é traída por seu próprio desejo quando vê um jovem sob a pele do urso: "ela pensou que só podia viver se lhe desse um beijo ali mesmo". Então ele desaparece. Mas no final ela fica com ele.

As três tias (norueguês)



   Era uma vez um homem pobre que vivia bem longe, numa cabana na mata, e ganhava a vida caçando. Ele tinha apenas uma filha, que era muito bonita e que, por ter perdido a mãe ainda criança e agora ser quase adulta, disse desejar sair pelo mundo e ganhar seu próprio pão.
   "Bem, mocinha!", o pai exclamou. "Para falar a verdade, aqui você só aprendeu a depenar aves e assá-las, mas de qualquer modo você deve tentar ganhar a própria vida."
   Então a jovem partiu em busca de um emprego, e depois de ter andado um pouco, chegou a um palácio. Lá ela arranjou um emprego, e a rainha gostou tanto dela que todas as outras jovens ficaram com inveja. Resolveram contar à rainha que a jovem dissera ser capaz de fiar meio quilo de linho em vinte e quatro horas — a rainha, é bom que se saiba, era uma grande dona de casa, e prezava muito um trabalho bem-feito.
   "Se você disse isso, tem que provar", a rainha disse. "Mas você pode ter um pouco mais de tempo, se quiser."
   Então, a pobre moça não ousou dizer que nunca tinha fiado em toda a sua vida, e apenas pediu uma sala onde pudesse trabalhar sozinha. Isso lhe foi concedido, e trouxeram-lhe a roda de fiar e linho. Então ela se sentou, triste e chorosa, sem saber o que fazer. Puxou a roda para um lado e para outro, virou-a de um lado para outro, mas sem muito resultado, porque ela nunca tinha visto uma roda de fiar em toda a sua vida.
   Mas de repente uma mulher entrou e se aproximou dela: "Por que está chorando, minha criança?", ela perguntou.
   "Ah!", a jovem suspirou fundo. "Não adianta lhe dizer, porque você não vai conseguir me ajudar."
   "Quem sabe?", a velha senhora disse. "Talvez eu consiga ajudá-la."
   Bem, pensou a jovem consigo mesma, de todo modo vou contar a ela, e então contou que as outras criadas tinham espalhado que ela era capaz de fiar meio quilo de linho em vinte e quatro horas.
   "E cá estou eu, pobre de mim, encerrada aqui para fiar todo esse monte de linho num dia e numa noite, quando na verdade eu nunca tinha visto uma roda de fiar em toda a minha vida."
   "Bem, não se preocupe, minha filha", a velha senhora disse. "Se você me chamar de Tia no dia mais feliz de sua vida, fio o linho, e você pode ir dormir."
   Quando ela acordou na manhã seguinte, lá estava o linho fiado em cima da mesa, tão liso e tão fino como jamais se vira antes. A rainha ficou muito satisfeita de obter um fio tão bonito, e deu à jovem uma quantidade ainda maior de linho. Mas a inveja das outras criadas aumentou ainda mais, e elas resolveram dizer à rainha que a jovem dissera ser capaz de tecer o fio que tinha fiado em vinte e quatro horas. Então a rainha disse novamente que a jovem tinha que fazer o que dissera ser capaz; mas, se não conseguisse terminar o trabalho em vinte e quatro horas, ela não seria intolerante e lhe daria um pouco mais de tempo. Também dessa vez a jovem não teve coragem de dizer "não", mas pediu para ficar numa sala separada para tentar cumprir a tarefa. Novamente se pôs a chorar e a soluçar, sem saber o que fazer, quando então uma outra senhora veio e lhe perguntou: "O que a aflige, menina?".
   A princípio a jovem não quis dizer, mas terminou por contar toda a história da sua aflição.
   "Ora, ora!", a senhora disse. "Não se preocupe. Se você me chamar de Tia no dia mais feliz de sua vida, vou tecer esse fio, e você pode simplesmente ir dormir."
   Sim, a jovem aceitou de bom grado. Então foi dormir. Ao acordar, lá estava uma peça de linho na mesa, tecida e com uma trama tão limpa e tão cerrada que não havia tecido que se lhe comparasse. Então a jovem pegou o tecido e mais do que depressa foi dá-lo à rainha, que ficou satisfeitíssima e providenciou uma quantidade ainda maior de linho para ela. Quanto às demais criadas, ficaram ainda mais irritadas, e deram tratos à bola para inventar alguma coisa sobre ela.
   Finalmente as criadas disseram à rainha que a jovem dissera ser capaz de transformar a peça de linho em blusas em vinte e quatro horas. Bem, tudo se repetiu. A jovem não teve coragem de dizer que não sabia costurar. Então foi encerrada numa sala, e lá ficou às lágrimas, cheia de aflição. Mas então chegou outra senhora e lhe disse que faria as blusas, se a jovem a chamasse de Tia no dia mais feliz de sua vida. A jovem ficou felicíssima com a proposta, e então, seguindo a recomendação da senhora, deitou-se para dormir.
   Ao acordar na manhã seguinte viu sobre a mesa as blusas feitas com a peça de linho — e um trabalho bonito como aquele, nunca jamais se viu. E, mais do que isso, todas as blusas estavam marcadas e prontas para usar. Assim, quando a rainha viu o trabalho, ficou tão contente com a forma como as blusas tinham sido feitas que se pôs a bater palmas e disse: "Nunca tive e nunca vi uma costura como essa em toda minha vida". E depois disso ela passou a gostar da jovem como se fosse sua própria filha. E então lhe disse: "Agora, se você quiser, poderá tomar o príncipe como esposo, porque você nunca vai precisar contratar uma mulher que trabalhe para você. Você sabe fiar, tecer e costurar".
   Assim, uma vez que a jovem era bonita e que o príncipe ficou muito feliz em recebê-la como esposa, o casamento logo se realizou. Mas bem na hora em que o príncipe ia se sentar com a noiva para a festa de casamento, apareceu uma bruxa velha e feia, com um narigão que com certeza tinha uns três metros de comprimento.
   Então a noiva se levantou, fez uma mesura e disse: "Bom dia, Tia".
   "Essa aí é tia da minha noiva?", o príncipe disse.
   "Sim, é!"
   "Bem, então é melhor ela se sentar conosco e participar da festa", o príncipe disse. Para falar a verdade, tanto ele como os demais acharam que ela era uma pessoa repugnante demais para ter perto de si.
   Mas então chegou uma outra bruxa velha. Ela tinha tal corcunda que teve dificuldade em passar pela porta. A noiva se levantou num abrir e fechar de olhos e a saudou: "Bom dia, Tia!".
   E o príncipe perguntou novamente se ela era tia da sua noiva. Ambas disseram que sim. Então o príncipe falou que, já que assim era, ela devia se sentar e participar da festa.
   Mas mal eles tinham se sentado, apareceu outra bruxa velha com olhos grandes feito pires, e tão vermelhos, lacrimejantes e turvos que causavam repulsa. Porém mais uma vez a jovem se levanta de um salto, com seu "Bom dia, Tia", e a esta o príncipe também convidou a se sentar. Não se pode dizer que ele estava muito feliz com aquilo, pois o príncipe pensou consigo mesmo: "Que Deus me proteja dessas tias da minha noiva!".
   Então, pouco depois de ter se sentado, ele não conseguiu guardar os pensamentos para si mesmo e perguntou: "Mas como é possível que minha noiva, uma jovem tão encantadora, tenha tias tão disformes e tão repugnantes?".
   "Logo vou lhe contar como isso é possível", disse a primeira. "Eu era tão bonita quanto ela quando tinha a sua idade. Mas tenho este nariz tão grande por ter passado muito tempo sentada, debruçada sobre meu trabalho de fiar, de forma que meu nariz foi crescendo, crescendo até ficar deste tamanho que você está vendo."
   "E eu", disse a segunda, "desde que eu era jovem, me inclinava para a frente e para trás diante do tear, por isso fui criando essa corcova que vocês estão vendo."
   "E eu", disse a terceira, "desde que era pequena, não fiz outra coisa senão cozer, cozer e cozer de olhos fitos na costura, e é por isso que eles ficaram tão feios e vermelhos, e agora não têm mais jeito."
   "Ora, ora!", o príncipe disse. "Foi uma sorte saber disso. Porque, se as pessoas ficam tão feias e repugnantes com esses trabalhos, então minha noiva não vai nem fiar, nem tecer nem costurar até o fim da sua vida."

Do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter

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   "As três tias"
   "O velho Habetrot" é a variante inglesa do conto escandinavo na qual a pessoa que presta ajuda se apresenta ao marido da fiandeira improdutiva como um exemplo do que acontecerá se esta for obrigada a trabalhar como fiandeira e tecelã (cf. "Vassilissa, a Formosa", p. 329, que de fato fia, tece e costura as blusas do rei à perfeição, portanto não está sob pressão para continuar). A fiandeira ociosa, porém, resiste à pressão das circunstâncias adversas para prendê-la ao pé de uma roda de fiar. Como a única maneira de se livrar da penúria é casar com um homem abastado, ela precisará recorrer a truques e subterfúgios. O que é mais divertido é essa conspiração de mulheres, que não apenas escondem os truques da heroína, mas também a salvam de um futuro de trabalho estafante e exprobação. O mesmo não acontece com as edições pós-1819 da história dos irmãos Grimm, que interpelam o leitor: "Você há de convir que ela era uma mulher repulsiva".
   (Darsent, p. 194.)

Os sete fermentos (árabe palestino)



   Há muito tempo uma velha morava sozinha numa choupana. Ela não tinha ninguém. Certo dia, quando o tempo estava bonito, ela disse: "Ah, sim! Por Alá, hoje o dia está ensolarado e bonito, e vou para a praia. Mas primeiro vou misturar esta massa".
   A velha terminou de misturar a massa, acrescentou o fermento, vestiu sua melhor roupa, dizendo: "Por Alá, agora é só ir à praia". Chegando à praia, ela se sentou para descansar, e então... olha lá um barco, que já está se enchendo de gente.
   "Ei, tio!", ela disse ao dono do barco. "Aonde vai você, sob a proteção de
Alá?"
   "Por Alá, estamos indo para Beirute."
   "Está bem, irmão. Leve-me com você."
   "Deixe-me em paz, ó velha", ele disse. "O barco já está cheio, e não há lugar para você."
   "Tudo bem", ela disse. "Vá. Mas, se você não me levar, que seu barco encalhe e afunde!"
   Ninguém ligou para o que ela disse, e eles partiram. Mas o barco ainda não tinha avançado vinte metros e começou a afundar. "Ei!", exclamaram. "Parece que a praga daquela mulher foi ouvida." Então voltaram e levaram a velha com eles.
   Em Beirute, ela não conhecia nada nem ninguém. Já estava perto do pôr-do-sol. Os passageiros desembarcaram, ela também desceu e se sentou para descansar um pouco, encostada a um muro. O que mais poderia fazer? As pessoas passavam de um lado para outro, e estava ficando muito tarde. A certa altura, passou um homem. Todos já tinham ido para casa, e lá estava aquela mulher encostada à parede.
   "O que faz aqui, irmã?", ele perguntou.
   "Por Alá, irmão", ela respondeu. "Não estou fazendo nada. Não conheço esta cidade, não tenho a quem procurar. Misturei minha massa, coloquei o fermento, e vim passear um pouco até ela crescer, quando então iria voltar para casa."
   "Ótimo", ele disse. "Venha para minha casa, então."
   Ele a levou para sua casa. Lá moravam apenas ele e a esposa. Eles levaram comida, riram e se divertiram — vocês precisavam ver como se divertiam. Depois que terminaram, escutem só! O homem trouxe um feixe de varas deste tamanho e começou a bater na mulher. "Qual é o lado que machuca mais?" E continuou com aquilo até quebrá-las todas nos flancos da esposa.
   "Por que está fazendo isso, menino?", a velha perguntou, aproximando-se para impedi-lo de continuar.
   "Para trás!", ele disse. "Você não sabe qual é o pecado dela. É melhor ficar de fora!" Ele só parou de surrar sua mulher depois de ter quebrado todas as varas.
   "Pobre mulher!", exclamou a velha senhora quando o homem parou. "Qual é o seu pecado, ó infeliz?"
   "Por Alá", a mulher respondeu. "Não fiz nada, nem pensei em fazer nada. Ele diz que é porque não engravido e não posso ter filhos."
   "É só por isso?", a velha perguntou. "Mas isso é fácil. Ouça, deixe-me lhe dizer uma coisa. Amanhã, quando ele vier bater em você, diga-lhe que está grávida."
   No dia seguinte, como de costume, o marido chegou em casa trazendo tudo que era necessário para a casa e um feixe de varas. Depois do jantar, ele ia bater na mulher, mas, antes que desse o primeiro golpe, ela gritou: "Pare! Estou grávida!".
   "É verdade?"
   "Sim, por Alá!"
   Daquele dia em diante, ele parou de bater nela. Ele a mimava, não a deixava se levantar para fazer nenhum trabalho doméstico. Tudo que ela queria, ele levava para a mulher.
   Depois disso, todos os dias a mulher procurava a velha e dizia: "O que vou fazer, minha avó? E se ele descobrir?".
   "Não importa", a velha respondia. "Durma tranqüila. As brasas vivas da noite não são mais do que cinzas pela manhã." Todo dia a velha colocava trapos na barriga da mulher para aumentá-la e dizia: "Basta continuar dizendo que está grávida, e deixe o resto por minha conta. Os tições da noite são as cinzas da manhã".
   Acontece que aquele homem era o sultão, e as pessoas ouviram o comentário: "A mulher do sultão está grávida! A mulher do sultão está grávida!". Quando chegou a hora de dar à luz, a mulher foi ao padeiro e disse: "Quero que você asse para mim um pão em forma de um bebê do sexo masculino".
   "Está bem", ele disse e lhe fez o boneco, que ela embrulhou e levou para casa, sem deixar que o marido visse. As pessoas diziam: "A mulher do sultão está para dar à luz, logo o bebê vai nascer".
   A velha se aproximou. "Na minha terra, trabalho como parteira", disse. "Ela ficou grávida graças aos meus esforços, e eu é que vou fazer o parto. Não quero ninguém por perto."
   "Está bem", as pessoas disseram. E logo se puseram a falar: "Ela deu à luz! Ela deu à luz!".
   "E foi menino ou menina?"
   "Menino."
   A mulher agasalhou o boneco e o colocou no berço. As pessoas comentavam: "Ela deu à luz um menino!". Procuraram o sultão e lhe disseram que ela dera à luz um menino. O arauto saiu pela cidade anunciando à população que na semana seguinte só seria permitido comer ou beber na casa do sultão.
   Então a velha mandou avisar que ninguém podia ver o bebê antes de se passarem sete dias. No sétimo dia anunciou-se que a mulher do sultão e o bebê iam aos banhos públicos. E nesse meio-tempo, todos os dias a mulher perguntava à velha: "O que vou fazer, minha avó? E se o meu marido descobrir?". E a velha respondia: "Fique tranqüila, minha querida! As brasas da noite são as cinzas da manhã".
   No sétimo dia os banhos foram reservados para a mulher do sultão. Levando roupas novas, as mulheres foram para lá, acompanhadas por uma criada. A mulher do sultão entrou no banho, e as mulheres colocaram a criada na frente do boneco, dizendo-lhe: "Cuide do menino! Tenha cuidado para que não entre um cachorro e o leve embora!".
   Dentro de pouco tempo a criada se distraiu, e então entrou um cachorro, pegou o boneco e o levou embora. A criada correu atrás dele, gritando: "Desgraçado! Largue o filho do meu senhor!". Mas o cachorro continuava a correr mastigando o boneco.
   Dizem que na cidade havia um homem muito desgostoso. Fazia sete anos que ele estava assim, e ninguém conseguia curá-lo. No momento em que ele viu uma criada correndo atrás de um cachorro gritando: "Largue o filho do meu senhor", começou a rir. E ele riu, riu até esquecer a dor que o afligia, e se curou. Saiu de casa correndo e perguntou à criada: "Que história é essa? Vi você correndo atrás de um cachorro que levava um boneco, e você gritando para largar o filho do seu senhor. O que está acontecendo?".
   "Aconteceu assim, assim", ela respondeu.
   O homem tinha uma irmã que tivera gêmeos sete dias antes. Ele a mandou chamar e lhe disse: "Mana, você não quer deixar um dos seus filhos comigo?".
   "Sim", ela disse lhe entregando um dos bebês.
   A mulher do sultão o tomou e levou para sua casa. As pessoas chegavam para lhe dar os parabéns. Como ela estava feliz!
   Depois de algum tempo a velha disse: "Sabem, crianças, acho que a minha massa já cresceu, e quero ir para casa assar o meu pão".
   "Por que você não fica?", eles lhe pediram. "Você nos traz bênçãos." Não sei o que mais disseram, mas ela respondeu: "Não. A terra anseia por sua gente. Quero ir para casa".
   Eles a puseram num barco, encheram-no de presentes e disseram: "Vá sob a proteção de Alá".
   Quando ela chegou em casa, guardou os presentes e ficou por uns poucos dias. Então deu uma olhada na sua massa. "Ora, por Alá!", ela exclamou. "Minha massa ainda não cresceu. Vou para a beira-mar me divertir um pouco." Ela ficou um pouco à beira-mar e... olhe lá um barco!
   "Para onde você vai, tio?"
   "Por Alá, vamos para Alepo", responderam.
   "Levem-me com vocês."
   "Ora, deixe-nos em paz, sua velha. O barco está cheio, e não tem lugar."
   "Se vocês não me levarem, que seu barco encalhe e afunde!"
   Partiram, mas dentro de pouco tempo o barco estava prestes a afundar. Voltaram, chamaram a velha e a levaram. Sendo ela estrangeira, onde haveria de ir? Ela se sentou junto a um muro e ficou olhando as pessoas que passavam para um lado e para outro ao anoitecer. Depois que todos tinham se recolhido em casa à noite, um homem ia passando por ela.
   "O que está fazendo aqui?"
   "Por Alá, não conheço nada nesta cidade. Não conheço ninguém, e cá estou eu, sentada junto a este muro."
   "Ora, não é bom ficar sentada aqui na rua. Levante-se daí e venha comigo à minha casa."
   Ela se levantou e foi com ele. Também desta vez, na casa só viviam o marido e a mulher. Eles não tinham filhos nem mais ninguém. Comeram e se divertiram, e tudo estava às mil maravilhas, mas na hora de dormir ele pegou um feixe de varas e se pôs a bater na mulher até quebrá-las todas em suas costas. No segundo dia aconteceu a mesma coisa. No terceiro dia, a velha disse consigo mesma: "Por Alá, quero descobrir por que esse homem bate na mulher desse jeito".
   Ela perguntou à mulher e esta lhe respondeu: "Por Alá, o problema não é comigo, só que meu marido trouxe para casa um cacho de uvas pretas. Eu as pus num prato branco feito leite e as levei para ele. 'Olhe!', eu lhe disse. 'Como é bonito o contraste do preto com o branco!' Então ele se levantou de um salto e disse: 'Ao diabo com a sua raça! Você arranjou um amante negro!'. Garanti-lhe que estava me referindo às uvas, mas ele não quis acreditar em mim. Todos os dias traz um feixe de varas e me bate".
   "Vou livrá-la disso", a velha disse. "Vá comprar umas uvas pretas e as coloque num prato branco feito leite."
   À noite, depois que ele jantou, a mulher trouxe as uvas e as serviu. A velha então se levantou de um salto e disse: "Olhe! Está vendo, meu filho? Por Alá, não existe nada mais belo do que o contraste do preto com o branco!".
   "Oh!", ele exclamou balançando a cabeça. "Não é só a minha mulher que diz isso! Você é uma velha senhora e diz a mesma coisa. Acontece então que minha mulher não fez nada, e eu a tenho tratando desse jeito!"
   "Não me diga que você batia nela só por causa disso!", a velha exclamou. "Ora! Você perdeu a cabeça? Olhe aqui! Você não vê o quanto é belo o contraste das uvas pretas com o prato branco?"
   Dizem que eles se tornaram bons amigos e que o marido parou de bater na esposa. Depois de ficar com eles por mais alguns meses, a velha disse: "A terra anseia por sua gente. Talvez agora minha massa tenha crescido. Quero ir para casa".
   "Fique, minha senhora! Você nos trouxe bênçãos."
   "Não", ela respondeu. "Quero ir para casa."
   Eles lhe prepararam um barco, encheram-no de comida e outras provisões. Ela se arrumou e foi para casa. E lá, em sua casa, depois de ter se acomodado, descansado e guardado suas coisas, ela deu uma olhada na massa. "Por Alá", ela disse. "Começou a crescer, e agora vou levá-la ao padeiro para assar." Ela a levou para o padeiro, que lhe assou o pão.
   Esta é minha história. Eu a contei e agora a deixo nas suas mãos.

Do livro "103 contos de fadas", de Angela Carter
 
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"Os sete fermentos"
   Angela Carter comenta: "Fatime, mais uma vez — duas histórias entrelaçadas pela personalidade da velha senhora. A mulher se muda da casa do pai para a do marido e nunca tem seu próprio espaço — mas não descarte o poder do 'outro' — expresso em parte pela narração de histórias, bordado, cestaria, cerâmica, canções nupciais, endechas". Então ela faz uma citação de Speak bird, speak easy: "para a mulher, o conflito é inerente à estrutura do sistema".
   Lê-se numa nota de rodapé dos editores: "A impossibilidade de engravidar e ter filhos é um dos temas mais comuns nesta coletânea" (p. 207). Não há dúvida de que essa é uma das preocupações expressas pelas mulheres nas histórias, principalmente porque "há tolerância para com um homem que bate na mulher que não tem filhos" (loc. cit.).
   A mulher desta história é uma velha encarquilhada com poderes mágicos, uma astuta e sábia auxiliadora de mulheres que fala em sua própria linguagem cifrada. Por exemplo, "A terra anseia por sua gente. Quero ir para casa". Talvez o fato de o pão não crescer signifique que seu trabalho, libertar as mulheres dos maridos, nunca tenha fim — salvo, evidentemente, quando isso convém, para que o contador de histórias termine sua narrativa. Tratando-se de uma velha, ela é uma companheira ideal para uma jovem mulher, pois é pouco provável que queira desencaminhá-la. Isso lhe dá margem para desenvolver os seus ardis em benefício de sua protegida. Angela Carter cita: "Pensa-se que as velhas são assexuadas; por isso, o marido mostra-se propenso a acreditar na inocência da esposa quando a velha confirma sua interpretação do 'preto sobre branco'" (p. 211). O formato é padrão no Oriente Médio (cf As mil e uma noites).
   O "sete" do título indica que a história faz parte de um ciclo de sete histórias narradas segundo a mesma fórmula.
   (Muhawi e Kanaana, p. 206.)